por_Andréia Martins • de_Lisboa
Discos de tributos e covers não são propriamente uma novidade na indústria fonográfica. Nascem do interesse pessoal de um artista em homenagear ídolos; pegando carona em datas como nascimento, morte, aniversários de lançamentos; ou ainda para valorizar o catálogo das gravadoras, revisitando repertórios e buscando novos faturamentos. Mas algo especial vem acontecendo desde 2020 na música brasileira, em diferentes gêneros, e misturando nova geração e artistas consagrados: Ana Cañas canta Belchior, Adriana Calcanhotto (e também Filipe Catto) cantam Gal, Melim canta Djavan, Illy canta Elis Regina, Fernanda Porto regrava apenas nomes da nova geração, como Mallu Magalhães e Jão, Anavitória canta Nando Reis, Ana Carolina canta Cássia Eller e, um dos últimos, Xande de Pilares canta Caetano.
Adriana Calcanhotto 'encarna' Gal
E não há indícios de que esses projetos vão parar. Mas por quê? Qual o poder de uma regravação?
“Muitas vezes uma regravação, seja de uma faixa ou um projeto inteiro, pode levar um artista para outro patamar”, comenta Gustavo Faria, diretor artístico da Som Livre, citando o exemplo do mais recente disco de Xande de Pilares, “Xande canta Caetano” (Gold Records).
A fórmula de sucesso desse formato combina diferentes fatores. Para o crítico musical Mauro Ferreira, “o que torna um tributo interessante é o histórico do artista e o nome do homenageado. Quando se trata de um show de Ana Carolina cantando Cássia Eller, por exemplo, o interesse é imediato. Havia uma conexão entre as duas no início da carreira, o que legitimou o tributo”, avalia ele.
No caso de Xande, o crítico afirma que, “em quase 30 anos de carreira, o cantor nunca tinha tido um disco tão badalado e comentado pela imprensa musical”.
De fato, é um dos lançamento mais falados do ano (embora tenha sido gravado em 2021), e nos primeiros dias reuniu comentários que mostravam uma parte do público surpresa com o fato de Caetano ser uma referência de um cantor de pagode e samba, enquanto outra parte questionava por que só agora Xande estava sendo reconhecido. Mas os ânimos foram se acalmando, Caetano se emocionou em um vídeo que viralizou, e os fãs se uniram em uma só opinião: Xande havia feito uma homenagem luminosa ao artista baiano.
“É uma satisfação para quem escuta estas canções há tanto tempo, como eu ouvia, ter a oportunidade de interpretar sem descaracterizar a obra do autor. Acho que não existe receio em agradar ou desagradar, existe o cuidado e a vontade de mostrar o que eu senti na hora de gravar”, diz o cantor, que teve produção de Pretinho da Serrinha no trabalho.
Ana Cañas: "Momento mais bonito da minha carreira"
A ideia do disco nasceu durante as noites de cantoria na casa de Caetano Veloso e foi sugerida pelo próprio e por Paula Lavigne. O disco traz 10 regravações, entre elas, “Lua de São Jorge”, “Alegria Alegria”, “Qualquer Coisa” e “Gente”. Xande ainda destaca “Tigresa” e relembra o motivo pela qual é uma de suas favoritas. “Quando acabei de ouvir a minha versão desta música, pedi para tocar de novo e de novo. Fiquei surpreso como consegui fazer a minha versão.”
Xande ia sugerindo canções, e Caetano dava o seu aval, mas ele preferiu evitar gravações como “Desde Que o Samba é Samba” e outros… sambas. “Na cabeça dele, eu ia estar na minha zona de conforto. Com ‘Sampa’ também. Ele priorizou que a gente gravasse outras canções, para ter a reação que ele teve quando eu cantei ‘Ela e Eu’, em uma das rodas de cantoria. Essa música não é um samba, mas eu toquei no cavaquinho, e ele achou interessante”, conta Xande, que relembra o desafio técnico que foi interpretar canções tão vinculadas a uma voz bem diferente da sua: “Até o meu comportamento vocal muda. É uma região vocal fora da minha. E aí vem aquela coisa de gostar de se ouvir, de passar a prestar atenção na voz. Coisa que eu não fazia antes.”
A sorte de Silva
O capixaba Silva viveu uma experiência parecida quando homenageou a cantora Marisa Monte. Depois de apresentar versões para músicas da cantora em um programa do Canal BIS, ele foi contactado por Marisa, que o elogiou e revelou acompanhar o trabalho dele. O resultado foi o início de uma amizade, o disco-tributo e uma canção inédita composta pelos dois.
“No caso do ‘Silva canta Marisa’, ele pega uma grande referência dele, e é até um mérito dele porque a Marisa dificilmente libera alguma coisa. Ela é muito criteriosa, mas gosta muito do Silva. Foi uma ideia deles, e ele conseguiu homenageá-la colocando a sua identidade sonora e musical, ainda contando com a participação dela no disco. Outro ponto que acho relevante é o fato de ser uma homenagem feita à artista em vida”, diz Gustavo Faria.
Homenagear o ídolo em vida também era um ponto importante para Xande: “Você fica mais emocionado ao ver a emoção do ídolo. Homenageamos o artista com ele fazendo parte. Talvez, se eu tivesse feito sozinho, teria colocado a emoção na frente. Eu tive muito medo desse projeto, e, graças a Deus, todas as opiniões foram favoráveis.”
Embora o lado artístico e a qualidade do projeto sejam fatores importantes, há questões que podem atrapalhar projetos como esse, como o estranhamento do público. Faria relembra o projeto “DNA Musical”, gravado por Alexandre Pires:
“Nesse projeto , ele gravou os grandes ídolos e influências dele, puxando pelas memórias de família, trazendo o que a mãe e o tio, que eram cantores, ouviam e o que se tocava nos almoços de final de semana em casa: Djavan, Cartola, Caetano, Gil. No álbum, ele contou com participações do Gil, do Chico Buarque, do Caetano, mas, infelizmente, nem o público dele entendeu nem o desses artistas consumiu o projeto, um pouco pelo preconceito de ver o Alexandre, um nome do pagode, transitando nessa área.”
Caetano Veloso e Xande de Pilares
Para ele, Xande poderia ter vivenciado a mesma situação, mas a emoção pública do Caetano, “que abraçou a ideia, mudou isso e humanizou o projeto.”
Regravações que (re)abriram caminhos
São muitos os exemplos de regravações que impactaram carreiras e o mercado. Uma das músicas mais executadas até hoje de Maria Gadú, cujas autorais fizeram muito sucesso, é a regravação que ela fez de “Quase Sem Querer”, da Legião Urbana, banda que ela voltaria a gravar no disco de versões “Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor”.
Você fica mais emocionado ao ver a emoção do ídolo. Homenageamos o artista com ele fazendo parte.”
Xande de PilaresEm 1996, o Jota Quest se apresentou ao mundo com a versão de “As Dores do Mundo”, música de Hyldon, escolhida para puxar o disco de estreia. Foi uma das mais tocadas nas rádios naquele ano. Os brasilienses do Capital Inicial também têm seu antes e depois de uma regravação: “Primeiros Erros”, de Kiko Zambianchi, faixa incluída no “Acústico MTV” do Capital, e que terminou catapultando não só disco todo como dando novo ímpeto à exitosa carreira de Kiko.
Homenagens a quem já foi
Mas o formato tributos é mesmo dominado pelas homenagens póstumas, no que Mauro chama de “indústria da saudade”.
“Quando um artista morre, como Gal Costa e Rita Lee, para citar exemplos recentes, há uma demanda natural do público e do mercado por tributos a esses artistas recém-falecidos. Fica fácil divulgar e gerar interesse. O que gera shows e discos oportunistas, mas também grandes trabalhos. Cito o show em que Adriana Calcanhotto serve um banquete de signos de Gal Costa e cito também o disco em que a cantora Filipe Catto aborda o repertório de Gal com a energia do rock como dois exemplos de grandes trabalhos surgidos nessa onda”, comenta Mauro.
Outro é o elogiadíssimo projeto de Ana Cañas cantando Belchior (1946-2017).
“Este momento é o mais bonito de toda a minha carreira. Belchior tem muito a nos ensinar sobre o metafísico, o existencial e o insondável da vida. Sobre a simplicidade, sobre a dimensão continental do nosso país. Esse projeto me trouxe muito aprendizado, entendimento e ressignificação do próprio canto: sobre prosódia, poética, dicção”, conta Cañas. “É um legado que atravessa o espaço-tempo e é incrivelmente atual. Com ele, alcançamos o Brasil real e profundo, das pequenas cidades aos maiores teatros do país. Algo inédito para mim até aqui.”
O espetáculo, que nasceu em uma live durante a pandemia e foi para a estrada a pedido do público, recebeu o prêmio de Show do Ano de 2022 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte - APCA. Reúne hits e lados B do cantor cearense, escolhas pautadas na emoção.
“É um grande desafio e responsabilidade, sem dúvida. O fã do Belchior é bastante exigente mas, curiosamente, ele alcança públicos de todas as faixas etárias e classes sociais. É realmente incrível”, explica Ana Cañas. “Recriei os arranjos com a bússola do coração, de um jeito em que a sua poesia saltasse aos ouvidos e que a força da palavra chegasse primeiro. Também tem o diálogo com o legado de outras cantoras maravilhosas que o interpretaram, como Elis e Vanusa. Fui entendendo aos poucos como costurar essas dimensões todas, respeitando, mas também trazendo novas matizes para os arranjos em 2023.”
“Acredito que só podemos pretender emocionar um outro coração humano se nos emocionarmos primeiro. Ele é um compositor muito profícuo e tem repertório para dois, três discos. Então, a escolha das músicas foi pautada pelas que me emocionam ou atravessam de forma mais profunda”, diz a paulistana, que faz companhia a Los Hermanos (“A Palo Seco”) e Emicida (com trechos de “Sujeio de Sorte” em “Amarelo”) entre outros nomes que homenageiam o cearense.
O que todos esses projetos mostram é que há sempre caminhos para a surpresa, mesmo quando falamos de músicas ou discos de sucesso.
“Pode ser difícil superar registros emblemáticos como o de 'Como Nossos Pais', por Elis Regina, para citar um exemplo. Mas, sim, sempre há a possibilidade de um artista encontrar um caminho novo que faça a canção florescer de forma tão ou mais sedutora do que a gravação original”, opina Mauro Ferreira. “Temos que estar com os ouvidos abertos, sem preconceitos.”