por_Eduardo Lemos • de_Londres
O cantor e compositor Chico César costuma contar em entrevistas que tem uma foto da cantora e compositora Juliete na porta de sua geladeira para sempre se lembrar "de quem ajuda a colocar comida” nela. Uma artista mulher, como Juliete, gravar músicas de compositores homens, como Chico César, é algo recorrente na música brasileira. Trata-se de um expediente tão comum que até poderia ser um gênero, tamanha a quantidade de lançamentos do tipo.
Mas e um intérprete masculino cantando canções criadas por mulheres? Aí, o cenário é radicalmente oposto. A verdade é que poucas compositoras teriam os mesmos motivos para colar a foto de um cantor em sua geladeira, já que homens quase nunca gravam músicas criadas por mulheres. Por quê?
O cantor e compositor Gustavo Galo: hábito de gravar canções escritas por mulheres
Para a cantora e compositora Roberta Campos, que até hoje só teve uma música de sua autoria gravada por um homem (Nando Reis em "De Janeiro a Janeiro"), é preciso lembrar que, por décadas , as mulheres foram escanteadas de quase todas as funções na indústria musical.
“Nas últimas décadas, porém, mesmo que de forma ainda tímida, tem havido um aumento na visibilidade e no reconhecimento de compositoras talentosas, e mais artistas estão gravando músicas escritas por mulheres”, diz Roberta. “A mudança cultural e a promoção da igualdade de gênero na indústria da música estão, aos poucos, ajudando a superar essas preferências históricas. Acredito que ainda teremos um longo caminho pela frente, as mulheres têm muito espaço ainda a ser conquistado no meio da música.”
"Historicamente, às mulheres não era dado o direito de participar da cena musical como aos homens. A elas não poderia ser atribuído o papel de compositora nem de instrumentista. As mulheres, por muitos anos, só podiam ocupar o papel de cantoras", diz.
"Imagine a quantidade de mulheres que foram silenciadas apenas por serem mulheres? Aí criou-se o mundo [dividido] neste sentido: o das intérpretes e o dos compositores", diz o cantor e compositor carioca Zé Ibarra, que gravou uma música (“Hello") da cantora e compositora paulistana Sophia Chablau em seu mais recente disco, "Marquês, 256".
Ibarra diz que gravar Sophia só engrandece sua obra: "A retórica da Sophia ocupa um lugar que a minha retórica não ocupa, mas eu adoraria que ocupasse. [Então], eu não estou ajudando a Sophia [ao regravá-la], eu estou me ajudando.”
Machismo e insegurança
"A gente vê o universo masculino como universal, e o universo feminino como só das mulheres, ou até menor. Talvez por isso a dificuldade de homens gravarem mulheres", arrisca a pesquisadora musical, curadora e comunicadora Roberta Martinelli. "Acho que é por isso que muitos homens não gravam mulheres, porque (o ato) cai na insegurança do homem. Os homens têm que ter menos medo, relaxar um pouco", completa Zé Ibarra.
"É o machismo. Não tem outra resposta", resume o cantor e compositor paulistano Gustavo Galo, que já regravou canções de Marina Lima (“Pra Começar”), Alzira E (“Entre o Mangue e o Mar", com sua banda Trupe Chá de Boldo) e Angela Ro Ro (“Fraca e Abusada”). Segundo Galo, Marina e Alzira "têm, de modos distintos, um olhar muito atento ao texto da canção, um cuidado em como cantar cada palavra.” Sobre regravar Ro Ro, ele diz que foi "uma das experiências mais especiais da minha carreira.”
E cita a história de Dona Ivone Lara. "Antes de se tornar a primeira sambista a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba, ela compôs por décadas. No entanto, para ser ouvida, inicialmente creditou suas próprias obras a um homem. Muitas das compositoras permanecem desconhecidas, invisibilizadas, mesmo quando sabemos cantar suas composições.”
Para Roberta Campos, porém, "o machismo também está enraizado na própria mulher". Segundo ela, "muito embora isso possa ser difícil de reconhecer, a própria mulher, por muitas vezes, não dá crédito à outra; e acaba preferindo, sem racionalizar essa decisão, por gravar músicas de homens. É quase algo instintivo, fruto de anos e anos de doutrinação", diz.
Homens: 276 x Mulheres: 24
Arthur Nogueira: "A experiência de Calcanhotto como compositora me interessa muito"
De fato: no Brasil, até pouco tempo atrás a composição foi quase que exclusivamente masculina. Chiquinha Gonzaga, Maysa e Dolores Duran formam o time das exceções que foram gravadas por homens e tiveram reconhecimento público - é sempre bom lembrar que um sem-número de mulheres criava, sim, suas próprias músicas, mas eram impedidas de assinar as suas composições.
Foi só nos anos 1960, a partir da revolução Rita Lee, que o ato de escrever canções começou a ganhar nomes e sobrenomes femininos: Angela Ro Ro, Baby Consuelo, Paula Toller, Marina Lima, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto, até chegarmos a Marina Sena e o duo Anavitória.
No entanto, segundo levantamento do Ecad realizado a pedido da UBC, as compositoras representam apenas 8% dos autores das músicas mais tocadas nos segmentos de rádio e de shows em 2022. Ou seja: dos 300 compositores mais populares do país atualmente, apenas 24 são mulheres. Em um mercado dominado pelo masculino, se mais homens gravassem músicas de compositoras, esses números poderiam ser muito melhores - assim como a conta bancária dessas artistas.
As mulheres, por muitos anos, só podiam ocupar o papel de cantoras.”
Roberta Campos, cantora e compositora"Geralmente, é negado à mulher a condição de protagonista da invenção", observa o cantor, compositor e produtor musical César Lacerda, que em 2017 gravou uma música de Pitty, “Me Adora”, ainda hoje a quarta música mais tocada em seu perfil no Spotify.
A composição, segundo ele, "carrega uma dimensão política bastante evidente, com traços bem definidos daquilo que são as reivindicações históricas do feminismo", o que lhe desafiou a assumir o lugar "da delicadeza e da fragilidade, aspectos repelidos pelo machismo na compreensão do que seria a masculinidade.”
Com músicas gravadas por Maria Bethânia e Gal Costa, Lacerda - um homem negro e nascido fora do eixo Rio-SP - imagina que encontrar intérpretes para suas obras poderia ser mais difícil se ele não fosse homem: "A estrutura patriarcal que molda e dirige a nossa sociedade certamente faria com que eu, fosse uma mulher ou um homem trans, encontrasse mais dificuldades para ter minhas obras gravadas por outras vozes. Já não é aceitável que essas noções absurdas continuem silenciosamente pactuadas entre nós.”
O sucesso é quase exclusivamente masculino
Este não é um problema restrito à música brasileira. Chris Dalla Riva, um pesquisador musical e analista de dados norte-americano, escutou todas as músicas que, entre os anos de 1958 e 2022, alcançaram o topo da lista da Billboard. E percebeu que apenas 25% desses superhits tinham um nome feminino nos créditos de composição. Em seguida, Dalla Riva decidiu reduzir a busca para canções criadas exclusivamente por uma ou mais mulheres. E achou um número ainda mais impactante: 3%.
Então, você pode pensar: "OK, mas nos últimos anos, isso já deve ter mudado um pouco". Na verdade, não. Ainda de acordo com o levantamento de Dalla Riva, de 2011 até 2022 - período em que as redes sociais ajudaram a amplificar as pautas feministas - apenas cinco canções escritas por mulheres atingiram o topo da lista da Billboard: uma da britânica Kate Bush (“Running Up That Hill"), outra da australiana Tones and I (“Dance Monkey”) e três da norte-americana Taylor Swift ("All Too Well", “Mine” e "Today Was a Fairytale”). Só cinco canções de um total de 214, sendo que as duas primeiras foram escritas antes de 2011, e as outras três pertencem a uma única compositora.
De 1958 até hoje, segundo o pesquisador, apenas 13 sucessos no top 5 da Billboard foram escritos exclusivamente por mulheres e interpretados exclusivamente por homens (um exemplo: “I Don't Want to Miss a Thing”, segunda música mais popular da banda Aerosmith no Spotify, foi composta por Diane Warren). Por outro lado, são 255 sucessos no top 5 escritos exclusivamente por homens e interpretados exclusivamente por mulheres.
Mudanças à vista
Em 1996, o Barão Vermelho lançou seu único disco de intérprete, "Álbum". Das 10 faixas, duas eram composições de mulheres: “Jardins da Babilônia", de Rita Lee, e “Amor, Meu Grande Amor”, de Angela Ro Ro e Ana Terra. "Foi uma sugestão minha para a regravação. É uma canção que transborda sabedoria", conta o baterista Guto Goffi. A faixa soma mais de 12 milhões de plays no Spotify e é a sexta mais popular da banda na plataforma.
"A mulher ficou aprisionada na sociedade por séculos e, por isso, ainda não conquistou totalmente o seu devido lugar no mundo. Mas toda essa falsa postura hipócrita e machista está caindo por terra aos poucos", comemora o músico e compositor.
O poeta, cantor e compositor Arthur Nogueira já gravou músicas de Adriana Calcanhotto, como “Cantada” e “Inverno”. "A experiência dela como compositora me interessa muito. A obra dela é lotada de experimentalismos e referências, e também está no mainstream da música pop", define Nogueira.
Para ele, há uma nova era se abrindo para a composição feminina. "As mulheres, cada vez mais, deixam de ser as musas inspiradoras e fazem acontecer. Elas não precisam inspirar ou soprar nos ouvidos dos homens, porque agora falam por si próprias. E sequer precisam que eles cantem o que elas compõem.”