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15

segundos

para prender

sua atenção

O que é a tendência de dividir uma canção em ciclos, cada um com um gênero ou estímulo diferente, e como ela vai tomando conta do pop

por_Alessandro Soler de_ Madri

O que é a tendência de dividir uma canção em ciclos, cada um com um gênero ou estímulo diferente, e como ela vai tomando conta do pop

por_Alessandro Soler de_ Madri

Tuítes de 140 caracteres, vídeos de 15 segundos no TikTok, Stories do Instagram com não mais que 1 minuto: o indício já estava nas redes sociais. Embora algumas dessas limitações de tempo tenham caído, sob pressão dos produtores de conteúdo, a necessidade de oferecer materiais rápidos, de fácil digestão, a uma sociedade constantemente bombardeada por estímulos veio para ficar — e se reflete na música.

Levada ao extremo no k-pop da Coreia do Sul, a tendência de dividir canções em ciclos de 15 segundos já vem ocorrendo no Brasil. E, segundo criadores e analistas da indústria musical, não é só uma decisão estética.

Cantora Anitta

Anitta: mescla de gêneros

“Você, como artista, não recebe nada no Spotify se a sua canção não toca mais de 30 segundos. É o tempo mínimo para pagar os royalties. Por isso, se você reparar, cada vez mais se fazem canções onde os estilos vão mudando em vários ciclos, tudo para não perder a atenção do ouvinte e ele fazer o skip. No k-pop, as músicas vão de 15 segundos de reguetón a 15 segundos de base disco, saltando a outros 15 de dembow”, disse Putochinomaricón, rapper espanhol nascido em Taiwan, ele mesmo adepto de uma mistura extrema de estilos.

A adesão de artistas como Anitta e Luisa Sonza às músicas de múltiplos gêneros é evidente. Anitta, que já declarou ser fã de heavy metal e ópera, vem surfando uma potente mescla de reguetón, funk e pop em seus maiores hits recentes. Luísa, em seu mais recente disco,“Escândalo Íntimo”, explora os ciclos de 15 segundos, por exemplo, em “A Dona Aranha”, na qual um pop de sotaque retrô, funk e base percussiva de samba vão se sucedendo.

No bregafunk de Pernambuco, a Uana traz pop de balada, rap, música eletrônica, trap. Tudo em dois minutos.

Júlia Ourique, pesquisadora musical

“Não é novo por aqui, na verdade. O Pará tem uma série de gêneros e subgêneros, do brega, do rock doido, do technomelody, que já trazem há muito essas misturas de uma forma estruturada. Agora está chegando ao mainstream nacional”, afirmou a pesquisadora musical Júlia Ourique, mestre e doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “No bregafunk de Pernambuco, a Uana traz pop de balada, rap, música eletrônica, trap. Tudo em dois minutos.”

 Arthur Braganti, compositor e parceiro de Letrux: ciclo de 15 segundos usado de forma inconsciente

Arthur Braganti, compositor e parceiro de Letrux

No seu último álbum, “Letrux Como Mulher Girafa”, com produção de João Brasil, a carioca Letrux navega por misturas de gêneros não necessariamente bem delimitadas. Tudo é mais fluido e multirreferenciado. Coautor de algumas canções, o instrumentista e compositor Arthur Braganti comentou que não é deliberada a presença dos ciclos como na faixa “Crocodilo”, em que synth pop “cavernoso” dura exatos 15 segundos antes de dar lugar a uma “conga futurista”.

“Não tinha isso dos ciclos na mente ao criar o clima da canção e sugerir ao João a base percussiva, o synth… Acho que aconteceu de modo inconsciente nessa música”, contou Braganti. “Totalmente está rolando uma mistura de gêneros, todo mundo está fazendo. Ultimamente, ouço mais as pessoas elencarem os nomes dos gêneros que fazem. Antes, havia um certo pudor, quase que parecia que era ‘feio’ tentar se classificar. Agora, se diz: ‘misturei trap, piseiro, reguetón’.”

Para ele, é interessante pensar num momento "transgênero" para a música:

“Pensar claramente no gênero só é problema quando vira fórmula e termina aprisionando a música. No sertanejo, para citar um só exemplo, as letras dificilmente conseguem fugir de uma fórmula estética, temática: tudo é sobre carência, vingança amorosa, dor de cotovelo. Fica efêmero demais.”

Se você tem algo que caiba (realmente) em 15 segundos, ótimo. Por que não?

João Marcello Bôscoli, produtor

DNA ASIÁTICO

Impossível pensar no jeito veloz de consumir as coisas que se espalhou pelo mundo sem tentar entender as sociedades asiáticas de onde tudo isso parece vir. Há décadas, produções culturais de países como Japão, China e Coreia do Sul já exploram as misturas de gêneros quase vertiginosas e a apresentação fragmentada. Um exemplo evidente, e recente, de como essa estética vem triunfando no Ocidente é o filme “Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, uma produção 100% estadunidense que utiliza uma narrativa essencialmente pop oriental e, em março passado, ganhou 7 estatuetas no Oscar, entre elas a de melhor filme.

“Esse filme tem comédia, tem romance, tem drama, tem kung fu, é chinês demais!”, riu a pesquisadora Júlia Ourique. “Na Coreia do Sul, o sistema industrial que eles desenvolveram como política de estado para a difusão dos produtos culturais deles, filmes, séries, música, é todo voltado para isso. Essa estética meio transgênero que a gente começa a ver aqui, com Anitta e outros, lá é uma linha de produção”, continuou a acadêmica, que destaca um aspecto positivo do modelo: “Ajuda a quebrar preconceitos, traz públicos de gêneros diferentes, e inclusive antagônicos, como já foram os do pop e do rock, para conversar entre si.”

“A esquizofrenia musical faz parte deste momento que a gente está vivendo. Os próprios jovens têm essa coisa de não saber se têm futuro. Então, já tem um tempo, as próprias bandas de rock, pensando nesse nicho, já não se definem como bandas de rock. Elas misturam baladinha tipo Elton John a guitarras a rap, a funk. E atraem muitos adolescentes! Inclusive, detecto um renascimento do rock nesse público da Geração Z justamente por causa das misturas. Cada vez mais, quem gosta de Taylor Swift pode ser fã do Paramore, amar a fase pop da Demi Lovato e a fase rock também”, detalhou a pesquisadora.

Quem também refletiu sobre coisas assim foi João Marcello Bôscoli, produtor musical, empresário e fundador da gravadora Trama.

“Misturar tudo é um reflexo da virada do milênio. Parece restaurante que serve feijoada, sushi, pizza, hambúrguer, salada e, no final, fica tudo com gosto semelhante. Mas sempre pode ficar bom, eu creio”, afirmou. “Se você tem algo que caiba (realmente) em 15 segundos, ótimo. Por que não?”

Ele ponderou, no entanto, sobre um aspecto do pop contemporâneo que nos faz antever problemas para o gênero no futuro:

 O espanhol Putochinomaricón, também adepto das misturas

O espanhol Putochinomaricón, também adepto das misturas

“Quando a música pop se alimentava de outros gêneros , como jazz, choro, samba, R&B, música para concerto, era possível observar crescimento, evolução e um certo grau de inovação. Quando começa a se alimentar do próprio pop, entra num ciclo autofágico… de diluição extrema.”

“A música é uma reportagem do seu tempo, não nasce em árvores, vive das pessoas deste momento. Aconteceu algo semelhante, em termos de aceleração, entre os anos 20 e 40 do século passado. Nos 20, era de ouro do jazz, a cadência foi acelerada pela necessidade de fazer as faixas caberem nos discos, nas mídias físicas. Tinha que acelerar os beats e resumir alguns temas. Nos anos 30, veio uma música mais escapista, com bpm acelerado, em meio à depressão econômica pós-quebra da bolsa. Nos anos 40, o pós-guerra trouxe ainda mais aceleração. Isto é histórico, e a história é pendular. Talvez estejamos vivendo agora um novo ponto extremo. Resolver as coisas em 15 segundos é bom para quem está vendendo algo. Mas não necessariamente para quem compra”, concluiu Bôscoli.

Braganti descreveu um cenário semelhante e pediu que o mercado não se engesse na fórmula e esteja aberto a outros tipos de contemplação e experimentação:

“Fico querendo voltar para um momento em que a música acontece e você pode ter o tempo de entrar no clima dela, na atmosfera. Revisito aquele pop da Sade, em que tudo flui tão bem, sem ups & downs desnecessários. O reggae também é assim, tem uma coisa mântrica, que te permite curtir a música de uma maneira mais profunda. Talvez estejamos perdendo isso, tenho saudade.”

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