Como surgiu o Sonastério, um dos mais especiais estúdios de gravação do país, na Serra do Curral (MG), que atrai grandes artistas em ‘peregrinação’ criativa
por_Ricardo Silva • de_São Paulo
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A pouco mais de 20km do Centro de Belo Horizonte, escondido entre as montanhas da Serra do Curral, há um espaço de contemplação e imersão quase sem paralelo no país. Um “retiro" para cultuar os deuses da música com estúdios de gravação de alto nível técnico, salas de ensaio, quartos para receber os artistas — que chegam a passar ali semanas, “isolados”, criando e respirando arte —, além de varandas com vistas impressionantes para a natureza ao redor.
O 'monastério' musical visto entre as árvores da Serra do Curral
“Essa ideia de um retiro espiritual, um monastério, foi a nossa inspiração desde o minuto zero. A música é a nossa religião. Até o nosso slogan traduz essa pegada: música ilumina”, descreve Bruno Barros Martins, criador do Sonastério, um lugar que, de tão especial no contexto brasileiro e mundial, entrou numa seleta lista da revista americana Billboard com 23 dos estúdios mais avançados e cênicos do planeta.
“O espaço é incrível, a casa é bonita, o estúdio é maravilhoso, a acústica e os equipamentos são muito bons. Mas tudo isso não importa se você não tiver uma equipe muito boa. Agradeço demais à que tenho aqui. E fazemos tudo com um carinho enorme, acho que dá para ver isso. O artista entende e reconhece. Para nós, o maior elogio é ouvir alguém dizer ‘vocês tratam a música como deve ser’”, diz Bruno.
Talvez inconscientemente, a vibe religiosa de Bruno quando tudo foi concebido, lá pelo início da década passada, surgiu porque ele andava mesmo em busca de uma “revelação”.
“Cheguei a estudar Economia na PUC-MG, mas abandonei no meio para me reconectar com o que eu achava que era meu caminho”, lembra. “Minha mãe é pianista, minha avó fez conservatório de piano, meu pai é fanático por música, rock progressivo. Estudei piano e flauta e tive banda cedo, aos 13 ou 14 anos. Mas banda é aquele negócio: é muita gente remando num mesmo barco, nem sempre na mesma direção. Quando todo mundo começou a sair pra estudar coisas ‘sérias’, medicina, direito, também questionei o que queria para mim.”
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Depois de uns anos atrás da sua vocação, e mesmo inseguro sobre um eventual futuro na música, abandonou Economia e rumou para a Califórnia. Foi estudar engenharia de áudio e produção musical, além de gestão de negócios na música, no Musicians Institute de Los Angeles. Teve contato, relembra, com um tipo de olhar 360 sobre a atividade musical que não conhecia até então:
“O mais legal dali é o ecossistema que se cria ao redor da música, muito evento, muita oficina, muita gente dedicada ao negócio, muito networking. A vida fora da faculdade era quase tão interessante e produtiva quanto as aulas.”
Ao se formar, ele já havia entendido que seu caminho era do lado de cá da mesa de som — “sou um músico frustrado como todo dono de estúdio”, ri — e se viu diante de uma encruzilhada:
Ney Matogrosso, um dos muitos que já gravaram por lá
“Lá é assim: ou você vai para um estúdio grande e começa servindo café, para depois ir enrolar o cabo, para depois ficar do lado do engenheiro vendo ele fazer… ou vai para um pequeno, em que trabalha muitíssimo, bota a mão na massa logo, mas passa por muito perrengue.”
A oportunidade que surgiu para Bruno foi num pequeno. Foram quase dois anos de trabalho intenso e não necessariamente bem remunerado, mas de muitos contatos, portas (para novos projetos) e janelas (para novas ideias) se abrindo.
Durante suas andanças por estúdios isolados e espalhados por lugares como Venice Beach, Santa Monica e Santa Barbara, na área metropolitana de L.A., com essa pegada de retiro criativo, lembrou-se do terreno ocioso da família em Nova Lima, Grande BH, e pensou: por que não?
De volta, contratou arquitetos, engenheiros especialistas em estúdios, e começou a erguer seu monastério. As portas se abriram em 2017 e, mesmo no período mais duro da pandemia, não voltaram a se fechar. Nos diferentes projetos do estúdio, já passaram por lá para gravar nomes como Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Gal Costa, Maria Gadú e Criolo, Tianastácia, Zeeba, Francisco El Hombre, Zeca Baleiro e a portuguesa Maro.
Outro dos projetos desenvolvidos ali é a Universidade do Áudio, que oferece cursos à distância de formação em engenharia de áudio e produção, em parceria com César Santos, professor de áudio de Minas Gerais com passagem pelo Berklee College of Music, dos EUA. Mais de 5 mil alunos já fizeram os cursos.
Alguns deles participaram do projeto “Sonastério: Ilumina”, uma série de registros audiovisuais de grande apuro estético que mostram os artistas de um jeito nunca visto: ali isolados, criando, apresentando reflexões, falando de composição e interpretando versões inéditas das suas músicas. O modelo de financiamento é através de captação e associação com marcas como Ambev e Cemig.
Criolo, outro dos talentos que passaram pelo Sonastério
“Esse tipo de projeto é um grande diferencial e o que aspiramos a fazer. O primeiro foi o documentário do Milton, em 2018, no qual entramos como coprodutores. Sempre visualizei o estúdio não só como estúdio. Aquele modelo dos anos 70 a 90, em que você alugava o espaço algumas horas, e alguém vinha gravar, não é sustentável, não dá para escalar. Para a gente manter algo assim, com qualidade, com gente comprometida trabalhando, precisa ser capaz de produzir nossas próprias coisas, diversificar, apostar em projetos que misturarem música com audiovisual”, elenca Bruno.
Se o modelo de gestão do estúdio é contemporâneo, o espírito de outros tempos paira no cuidado que ele garante imprimir a tudo o que faz por ali:
“Antigamente, na época das gravadoras ricas, os estúdios tinham mil profissionais: o diretor de voz, o cara que operava a fita, o engenheiro de áudio… Com o passar dos anos, todo mundo teve que aprender a fazer tudo, e o refino foi se perdendo. A nossa ideia é voltar um pouco a esse refino. Não dá pra voltar ao tempo áureo dos rios de dinheiro, mas a gente não pode perder o apreço pela arte, não pode fazer correndo, pensando em estourar no TikTok (risos). Gosto de pensar que somos meio artesãos por aqui.” •